Estava claro para mim, no início de 1992, que finalmente o século XIX havia acabado. A extinção da URSS era o fim não só do “socialismo real”, mas também da possibilidade da teoria da luta de classes se manter como um visão predominante a respeito das transformações sociais.
Isso ficou ainda mais evidente com a campanha do “Fora Collor”. Nada havia no movimento – e escrevi sobre isso na época – que pudesse estar afinado com objetivos exclusivamente classistas e econômicos no sentido do marxismo clássico. A revolta contra Collor foi, durante boa parte do tempo, motivada por um descontentamento moral. Lula, Covas, Brizola e até Quércia pareciam então como que “pessoas do bem”, contra as quais a população mais pobre, insuflada por determinações momentâneas, fora posta ao lado de um falso “caçador de Marajá” que, de posse da Presidência, abria o Palácio do Planalto para PC Farias, um nítido e perigoso bandido.
Revista Veja do anos oitenta
Claro que Collor irritou a população com o confisco da caderneta de poupança. Este ano acabou não trazendo posteriormente nenhum benefício, ficou como um tiro nas costas da classe média em seus diversos graus. Mas, na base do movimento “Fora Collor”, a questão não classista e não econômica é que esteve sempre fervendo. Não à toa os primeiros a se mobilizarem contra ele foram estudantes de classe média alta, em colégios de gente rica. Era fácil encontrar “musas” e “musos” no movimento, já que a imprensa sempre vê tais figuras nos que possuem os rostos da classe média alta.
Ficamos sem perceber isso, o não caráter de luta de classes no conjunto da coisa toda, porque o movimento do “Fora Collor” desembocou em partidos ainda classistas, voltado para a política do início do século XX e alimentados por doutrinas do século XIX. Nesse ciclo, PSDB e PT herdaram bandeiras social-democratas interiores ao MDB e PMDB e, enfim, completaram uma época. Essa época chega ao fim agora, de uma vez por todas, com o esfacelamento do PT e com a inutilidade já anterior do PSDB.
Que tipo de esfacelamento temos? O que derrota o PT e faz o “Muro de Berlim” finalmente cair de uma vez, aqui entre nós? Problemas econômicos tem um peso, mas, novamente, o motivo é fundamentalmente de psicopolítica: traição da palavra, imoralidade administrativa, afronta ao brio da população. Dilma e Lula, na juventude, já estavam vivendo um apontamento para o que seria o resto, logo depois, do fim da modernidade clássica. Mas o destino quis ser mais irônico e trazê-los maduros, de cabeços brancos, para serem eles próprios imolados pela população de modo a não se deixar dúvida sobre a extermínio das diretrizes de uma época. O episódio dos grampos, da publicidade das falas e da incompetência de Lula e Dilma em perceberem em que tempo vivem, mostra o quanto a população está para enterrar dinossauros.
Cena do filme Adeus Lênin
O Impeachment de Dilma, acontecendo ou não, agrupado à tentativa de Lula ser ministro para escapar da Justiça, é uma afronta que apenas sela de vez o fim do PT e o fim de qualquer possibilidade de existência de algum partido com o nome de “trabalhista” ou “do trabalhador” ou “socialista” e coisas do tipo. Finaliza-se uma época que, bem nos Estados Unidos, nasce para imediatamente morrer, que é esquisito canto do cisne de Sanders. Na verdade, “direita” e “esquerda” continuarão a existir no meio jornalístico, mas terão pouco a ver com questões de classe e, muito mais, com panoramas sobre o modo de automanutenção dessa estufa de mimos (Sloterdijk) chamada “sociedade da abundância”.
O que está em jogo agora são os estilos a respeito de como articular peso e não peso, gravidade e movimento anti-gravitacional, de modo a ver o que é que se pode chamar de realidade – a realidade 2.0 – no interior da estufa, as zonas de conforto do mundo atual, os Estados Unidos e a Europa, e bolsões aqui e acolá nos BRICS. Ar condicionado, vegetarianismo, invenção de papeis sexuais, entretenimento, performances esportivas, morbidez falada, biogenética e geração de monstros – esses serão os temas que dominarão os cenários dessas estufas, mesmo que tensionadas pelas migrações periódicas. A “questão dos pobres” será a questão da entrada dos bárbaros, mas não mais a questão central, mesmo que tais zonas de conforto venham a ampliar diferenças até no seu interior menos afeito à rudeza.
Richard Rorty no passado recente se deu conta disso. Peter Sloterdijk atualmente sabe bem sobre tudo isso.
Em um prazo de menos de cinco anos e não ouviremos mais falar de “partido dos trabalhadores”. No máximo ficará por aí uma sigla moribunda, como alguma coisa extemporânea, como é o hoje o PCdoB ou PCB e adendos.
Peter Sloterdijk
Pessoas de direita e esquerda, no sentido defendido por gente que se diz socialista ou que se diz liberal de direita, não farão sentido nesse novo mundo. Estarão balbuciando coisas, mas completamente fora das narrativas internacionais que já estão sendo tecidas, há uns quarenta anos, por outros fios e cores. A “esquerda” tenderá cada vez mais a ser redesenhada por temas que manterão um vago sentido de generosidade para os menos fortes e liberdade de criatividade, ao passo que a direita irá se por sob o crivo do conservadorismo genérico e certo nariz torto para com a liberdade que se faça generosa demais para os menos fortes.
Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo.